Saturday, May 20, 2006

Mia Couto

"Uns sabem e não acreditam.
Esses não chegam nunca a ver.
Outros não sabem e acreditam.
Esses não vêem mais que um cego."

(Provérbio de Tizanga)


Mia Couto, O Último Voo do Flamingo, Lisboa, Editorial Caminho, 2000

Wednesday, May 17, 2006

O homem de negócios

O quarto planeta era o do homem de negócios. Estava tão ocupado que não levantou sequer a cabeça à chegada do príncipe.
- Bom dia, disse-lhe este. O seu cigarro está apagado.
- Três e dois são cinco. Cinco e sete, doze. Doze e três, quinze. Bom dia. Quinze e sete, vinte e dois. Vinte e dois e seis, vinte e oito. Não há tempo para acender de novo. Vinte e seis e cindo, trinta e um. Uf! São pois quinhentos e um milhões, seiscentos e vinte e dois mil, setecentos e trinta e um.
- Quinhentos milhões de quê?
- Hem? Ainda estás aqui? Quinhentos e um milhões de... eu não sei mais... Tenho tanto trabalho. Sou um sujeito sério, não me preocupo com ninharias! Dois e cinco, sete...
- Quinhentos milhões de quê? repetiu o principezinho, que nunca na sua vida renunciara a uma pergunta, uma vez que a tivesse feito.
O homem de negócios levantou a cabeça:
- Há cinqüenta e quatro anos que habito este planeta e só fui incomodado três vezes. A primeira vez foi há vinte e dois anos, por um besouro caído não sei de onde. Fazia um barulho terrível, e cometi quatro erros na soma. A segunda foi há onze anos, por uma crise de reumatismo. Falta de exercício. Não tenho tempo para passeio. Sou um sujeito sério. A terceira... é esta! Eu dizia, portanto, quinhentos e um milhões...
- Milhões de quê?
O homem de negócios compreendeu que não havia esperança de paz:
- Milhões dessas coisinhas que se vêem às vezes no céu.
- Moscas?
- Não, não. Essas coisinhas que brilham.
- Abelhas?
- Também não. Essas coisinhas douradas que fazem sonhar os ociosos. Eu cá sou um sujeito sério. Não tenho tempo para divagações.
- Ah! estrelas?
- Isso mesmo. Estrelas.
- E que fazes tu de quinhentos milhões de estrelas?
- Quinhentos e um milhões, seiscentos e vinte e duas mil, setecentos e trinta e uma. Eu sou um sujeito sério. Gosto de exatidão.
- O que fazes tu dessas estrelas?
- Que faço delas?
- Sim.
- Nada. Eu as possuo.
- Tu possuis as estrelas?
- Sim.
- Mas eu já vi um rei que...
- Os reis não possuem. Eles "reinam" sobre. É muito diferente.
- E de que te serve possuir as estrelas?
- Servem-me para ser rico.
- E para que te serve ser rico?
- Para comprar outras estrelas, se alguém achar.
Esse aí, disse o principezinho para si mesmo, raciocina um pouco como o bêbado.
No entanto, fez ainda algumas perguntas.
- Como pode a gente possuir as estrelas?
- De quem são elas? respondeu, ameaçador, o homem de negócios.
- Eu não sei. De ninguém.
- Logo são minhas, porque pensei primeiro.
- Basta isso?
- Sem dúvida. Quando achas um diamante que não é de ninguém, ele é teu. Quando achas uma ilha que não é de ninguém, ela é tua. Quando tens uma idéia primeiro, tua a fazes registrar: ela é tua. E quanto a mim, eu possuo as estrelas, pois ninguém antes de mim teve a idéia de as possuir.
- Isso é verdade, disse o principezinho. E que fazes tu com elas?
- Eu as administro. Eu as conto e reconto, disse o homem de negócios. É difícil. Mas eu sou um homem sério!
O principezinho ainda não estava satisfeito.
- Eu, se possuo um lenço, posso colocá-lo em torno do pescoço e levá-lo comigo. Se possuo uma flor, posso colher a flor e levá-la comigo. Mas tu não podes colher as estrelas.
- Não. Mas eu posso colocá-las no banco.
- Que quer dizer isto?
- Isso quer dizer que eu escrevo num papelzinho o número das minhas estrelas. Depois tranco o papel à chave numa gaveta.
- Só isto?
- E basta...
É divertido, pensou o principezinho. É bastante poético. Mas não é muito sério.
O principezinho tinha, sobre as coisas sérias, idéias muito diversas das idéias das pessoas grandes.
- Eu, disse ele ainda, possuo uma flor que rego todos os dias. Possuo três vulcões que revolvo toda semana. Porque revolvo também o que está extinto. A gente nunca sabe. É útil para os meus vulcões, é útil para a minha flor que eu os possua. Mas tu não és útil às estrelas...
O homem de negócios abriu a boca, mas não achou nada a responder, e o principezinho se foi...
As pessoas grandes são mesmo extraordinárias, repetia simplesmente no percurso da viagem.


Antoine de Saint-Exupéry, O Principezinho, cap. XIII



Monday, May 15, 2006

Pedra Filosofal

Eles não sabem que o Sonho,
É uma constante da vida,
Tão concreta e definida,
Como outra coisa qualquer.

Como esta pedra cinzenta,
Em que me sento e descanso,
Como este ribeiro manso,
Em serenos sobressaltos.

Como estes pinheiros altos,
Que em verde e oiro se agitam,
Como estas árvores que gritam,
Em bebedeiras de azul.

Eles não sabem que sonho,
É vinho, é espuma, é fermento,
Bichinho alacre e sedento,
De focinho pontiagudo,
Num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho,
É tela é cor é pincel,
Base, fuste ou capitel,
Arco em ogiva, vitral
Pináculo de Catedral,
Contraponto, sinfonia,
Máscara negra, magia
Que é retorta de alquimista.

Mapa do mundo distante,
Rosa dos Ventos Infante,
Caravela quinhentista,
Que é cabo da Boa-Esperança.

Ouro, canela, marfim,
Florete de espadachim
Bastidor, passo de dança,
Columbina e Arlequim.

Passarola voadora,
Pára-raios, locomotiva,
Barco de proa festiva,
Alto-forno, geradora.

Cisão do átomo, radar,
Ultra-som, televisão,
Desembarque em foguetão,
Na superfície lunar.

Eles não sabem nem sonham,
Que o sonho comanda a vida,
Que sempre que o homem sonha,
O mundo pula e avança,
Como bola colorida,
Entre as mãos duma criança

Poema de António Gedeão

Friday, May 12, 2006

Mia Couto

"- O nosso corpo é feito de quê? De carne, sangue, águas contidas?
Não, segundo ele, o corpo era feito de tempo. Acabado o tempo que nos é devido, termina também o corpo. Depois de tudo, sobra o quê? Os ossos. O não--tempo, nossa mineral essência. Se de alguma coisa temos que tratar bem é do esqueleto, nossa tímida e oculta eternidade."
Mia Couto, O último Voo do Flamingo, Lisboa, Editorial Caminho, 2000

Wednesday, May 10, 2006

Palavras de Mia Couto

"Deu-se o caso numa família pobre, tão pobre que nem tinha doenças. Dessas em que se morre mesmo saudável." ..."Em todo o mundo, os pobres têm essa estranha mania de morrerem muito."

Mia Couto, Contos do nascer da terra, Lisboa, Editorial Caminho, 1997

Friday, May 05, 2006

PLEGARIA A UN LAVRADOR

Levántate y mira la montaña
de donde viene
el viento, el sol y el agua.
Tú que manejas el curso de los ríos
tú que sembraste el vuelo de tu alma,
levántate y mírate las manos,
para crecer estréchalas a tu hermano,
juntos iremos
unidos en la sangre,
hoy es el tiempo que puede ser mañana.
Libranos de aquel que nos domina
en la miseria,
tráenos tu reino de justicia
e igualidad,
sopla como el viento la flor
de la quebrada,
limpia como el fuego
el cañón de mi fusil.
Hágase por fin tu voluntad
aquí en la tierra,
danos tu fuerza y tu valor
al combatir,
sopla como el viento
la flor de la quebrada,
limpia como el fuego
el cñón de mi fusil.
Levántate y mírate las manos,
para crecer estréchalas a tu hermano,
juntos iremos
unidos en la sangre,
ahora y en la hora
de nuestra muerte,
amén.

Canção de Victor Jara, cantor chileno, assassinado com milhares de pessoas por Agusto Pinochet,
que foi Presidente do Chile e não foi julgado pelo Tribunal Internacional de Haia.

Tuesday, May 02, 2006

Canções de Abril

Há dias a Dulce do "Para além de mim", transcreveu um poema de Manuel Alegre, chamado "Liberdade" e eu lembrei-me de o ouvir cantado.
Lembrei-me entretanto que quem o cantou foi João Maria Tudela num disco em que também cantava um poema de Reinaldo Ferreira que eu acho muito bonito.
É engraçado mas, ao contrário de mim, quase ninguém se lembra de o ouvir cantar estas duas canções.

Quero um cavalo de várias cores,
Quero-o depressa que vou partir.
Esperam-me prados com tantas flores,
Que só cavalos de várias cores
Podem servir.

Quero uma sela feita de restos
Dalguma nuvem que ande no céu.
Quero-a evasiva - nimbos e cerros-
Sobre os valados, sobre os aterros,
Que o mundo é meu.

Quero que as rédeas façam prodígios:
Voa, cavalo, galopa mais,
Trepa as camadas do céu sem fundo,
Rumo àquele porto, exterior ao mundo,
Para onde tendem as catedrais.

Deixem que eu parta, agora, já,
Antes que murchem todas as flores.
Tenho a loucura, sei o caminho,
Mas como posso partir sózinho
Sem um cavalo de várias cores?


Do livro "Poemas" de Reinaldo Ferreira, Poema I