Friday, December 30, 2005

Quando estou só

Quando estou só, penso em ti.
Penso muito em ti. Na tua verticalidade, na tua coerência, na tua bondade, na tua amizade, na tua juventude, na tua sabedoria.
E penso também, muitas vezes se valeu a pena ("vale sempre a pena quando a alma não é pequena", dizia o poeta). Para ti sim, porque sempre soubeste o que querias da vida e o que vida queria de ti. Sempre soubeste cumprir a tua obrigação, o teu dever de ser humano de corpo inteiro.
O teu exemplo é realmente uma luz que brilha no escuro como que querendo mostrar que devo continuar.
Mas não consigo, sabes? Deixei de acreditar. Não em ti nem na pureza das tuas intenções, mas no Homem.
Esta é uma carta póstuma, uma carta que nunca te escreveria enquanto foste vivo, por vergonha da pequenez dos meus sentimentos, pela fraqueza ideológica, pela mesquinhez de não ter coragem de continuar a lutar. Nunca quiz que soubesses disto. Vês como sou cobarde! Não, não foi falha tua, não foi por não entender o que defendias. Sempre entendi e concordei.
Mas depois veio a desilusão, o desespero pela falsidade que sentia em tantos rostos em tantas atitudes mascaradas.
Falhei. Eu falhei e continuo a falhar porque continuo a não conseguir dar um passo para alterar as coisas. Continuo quieta no meu canto.
E quando estou só penso em ti!,

Thursday, December 29, 2005

1ª Tentativa

Vou tentar escrever pela primeira vez depois de alguns anos.
Anos de solidão procurada e alimentada por uma necessidade absoluta de não ter de ser confrontada com o julgamento dos "outros".
Assim refugiada do contacto obrigatório com humanos ganho a liberdade de ser eu, de estar só, de viver sem culpas formuladas, (porque as sentidas permanecem), por quem sempre girou à minha volta abafando-me, roubando-me até o direito de ser eu, isolando-me numa solidão de estar só.
Não a que vivo agora, agora vivo só, não sofro de solidão.
É complicado escrever pensando que outros vão ler, vão entrar dentro de mim e perceber algumas das minhas muitas fraquezas, mas vou tentar abstrair-me desse "pequeno" senão e soltar um pouco do que me vai na alma. Talvez consiga.
O que escrevi nos dias anteriores já é antigo, mas ainda sentido, por isso transcrevi.

E vou transcrever outro porque me falta a vontade de continuar hoje...


Escrevo porque quero.
O que quero.
Como quero.
Não para os outros mas para mim mesma.
Monólogo transparente,
Entre mim
E mim.
Sou eu.
Posso enfim nestes momentos,
Estar triste.
Porque quero!
Ter a minha opinião.
A que quero!
Confessar o meu sentimento.
Como quero!
Todo!
Só eu, comigo.
Que ninguém viole esta intimidade.

Eu

Wednesday, December 28, 2005

Quero escrever até que o pulso me doa.
Deixar a caneta correr a gosto pelo papel.
Juntando letras, formando frases.
Incoerentes
Mas verdadeiras.
Com a verdade possível do improviso.
Com a verdade lógica da sinceridade autorizada.
Escrever somente.
O pensamento que sai incontido
Pelo bico duro da caneta.
Sentir, escrevendo o pensamento.
E se lêem?
Não.
Vou guardar a caneta.
Não vou deixar que os olhos da censura humana
Vejam o meu pensamento,
O meu sentimento,
Nu.
Seria considerado uma obscenidade!

Eu

Wednesday, December 21, 2005

Quando escrever um poema quero escrevê-lo inteiro.
Não amputado de sentimento.
Não deixando a consciência comandar, manipulando.
Quero escrevê-lo todo.
E falar da maldade, do fingimento,
Do "salve-se quem puder".
Não chamar inconsciência
À intencional fobia de ser maior,
De estar bem com todos,
de aparentar a superioridade que advem
De pisar, de minar, de consporcar atitudes limpas.
Não desculpar, porque não quero,
A mesquinhez da lesma que se arrasta pessonhenta,
Não precisando ser nada
para sujar o pequeno caminho por onde passa.
Não vou desculpar, nem compreender, nem aceitar.
Detesto o que vejo.
Odeio o ambiente torpe, pequeno caminho,
Onde cada um se movimenta
Como uma víbora que aguarda
Que a presa incauta lhe entre na boca.
Odeio a indiferença aparente
Com que a aranha vê a mosca voar à volta da teia.
"Ela" sabe que a teia está lá.
Não. Não vou compreender, nem aceitar.
Mesmo correndo o risco de ser eternamente marginalizada.


Eu

Sunday, December 18, 2005

O JURAMENTO DO ÁRABE

Baçus, mulher de Ali, pastora de camelas,
Viu de noite, ao fulgor das rútilas estrelas,
Vail, chefe minaz de bárbara pujança,
Matar-lhe um animal. Baçus jurou vingança,
Corre, célere voa, entra na tenda e conta
A um hóspede de Ali a grave, a inulta afronta.

«Baçus, disse tranquilo o hóspede gentil,
Vingar-te-ei com meu braço, eu matarei Vail».

Disse e cumpriu.

Foi esta a causa verdadeira
Da guerra pertinaz, horrível, carniceira
Que as tribos dividiu.
Na luta fratricida,
Omar, filho de Anru, perdera o alento e a vida.

Anru, que lanças mil aos rudes prélios leva,
E que, em sangue inimigo, irado, os ódios ceva
Incansável procura - e é sempre em balde - o vil
Matador de seu filho, o tredo Mualhil.
Uma noite, na tenda, a um moço prisioneiro,
Recém-colhido em campo, o indómito guerreiro
Falou, severo, assim:
«Escravo, atende e escuta:
Aponta-me a região, o monte, o plaino, a gruta,
Em que vive o traidor Mualhil, diz a verdade;
Dá-me que o alcance vivo, e é a tua liberdade!»

E o moço perguntou:
«É por Alá que o juras?»
«Juro» - o chefe tornou.
«Sou o homem que procuras!
Mualhil é o meu nome, eu fui que espedacei
A lança de teu filho, e aos pés o subjuguei!»

E, intrépido, fitava o atónito inimigo.

Anru volveu: «És livre, Alá seja contigo!»

Gonçalves Crespo

Friday, December 16, 2005

Impressão Digital

Os meus olhos são uns olhos
E é com esses olhos uns
que eu vejo no mundo escolhos
onde outros, com outros olhos,
não vêem escolhos nenhuns.

Quem diz escolhos diz flores.
De tudo o mesmo se diz.
Onde uns vêem luto e dores,
uns outros descobrem cores
do mais formoso matiz.

Nas ruas ou nas estradas
onde passa tanta gente,
uns vêem pedras pisadas,
mas outros, gnomos e fadas
num halo resplandecente.

Inútil seguir vizinhos,
querer ser depois ou ser antes.
Cada um é seus caminhos.
Onde Sancho vê moinhos
D. Quixote vê gigantes.

Vê moinhos? São moinhos.
Vê gigantes? São gigantes.


António Gedeão